Por: Alinne Castelo Branco

O feriado do dia 15 de novembro iria cair numa terça-feira. A faculdade de Ana decidiu emendar o feriado de terça com a segunda-feira. Como num desses tradicionais fins de semestre, vários trabalhos se acumulam, o grupo de uma disciplina do qual Ana fazia parte, resolveu fazer as gravações de um documentário, e essas gravações seriam nessa emenda.

 Eles passaram dois longos dias, dum lado para o outro, as vezes de baixo de muita chuva, ou de baixo de muito sol. As edições desse documentário seriam feitas por Ana, na casa de uma amiga, na quinta-feira daquela mesma semana. Na quarta-feira, pela noite, Ana passou os arquivos gravados, da câmera para o notebook, e do notebook para seu HD externo. Amanheceu, e Ana colocou junto as suas coisas, o HD. Ana já não estava tão bem, na naquela noite tinha dormido pouco, e sem motivo. Sua cabeça ia longe ao pensar em tantos trabalhos para fazer, tantas preocupações, sem saber o porquê que tudo veio à tona.

Ela carregava uma bolsa com roupas, e outra bolsa com coisas da faculdade. A mãe de Ana a deixa na parada de ônibus, e ao se despedir com um beijo, a mãe diz:

 – Eu te amo, vai com Deus.

Ana responde:

– Eu te amo, fique com Ele.

A moça que tem seus vinte anos, estudante de comunicação, entra num ônibus velho, dá um bom dia sorridente ao motorista Alisson, velho conhecido de Ana, pelos vais e vens da faculdade para casa. Nos assentos duros e desconfortáveis do ônibus, Ana cai num sono bom, aqueles que nos levam aos sonhos. Ela pega uns dois engarrafamentos ao seu destino principal, a universidade. Chegando lá, na sua sala encontra uma galera sorridente e descontraída. Ali ela vê a ansiedade dos alunos que apresentariam seu último programa de rádio ao vivo. Aquela, era a terceira edição, e os alunos riam, enquanto arrumavam seus textos, e gravavam seus OFFs no estúdio.

Ao colocar o HD externo num computador da sala, Ana percebe que a pasta com os arquivos gravados não estavam lá, e ela se desespera, pois naquele dia, ela iria editar o documentário, para a aula da manhã seguinte. Ana conversa com sua amiga, que estava no grupo do documentário, e explica a situação. Por alguns momentos, Ana pensa em ir de ônibus até em casa, e passar novamente os arquivos para HD e assim voltaria a faculdade. Só que ela mora há mais ou menos 30 km dali. Ela pensa no tempo que demoraria para ir até em casa e conversa novamente com sua amiga, prometendo ajudar com a gasolina, se ela ir até a casa de Ana, onde estaria o notebook .

Partem ao destino para casa junto à outra menina que também faz parte do trabalho em grupo, lá encontram a mãe de Ana, que faz almoço para as meninas. Elas almoçam, e decidem ir de volta para a universidade. Ao invés de só pegar o necessário, Ana leva o notebook por medo de perder novamente os arquivos.

Vão até a casa da outra colega, pegam roupas, para que todas durmam na casa da amiga de Ana, que fica muito próximo a universidade. Para que assim, por mais que elas virassem a noite trabalhando, não teriam que acordar mais cedo por conta do ônibus.

Elas dão uma volta na cidade, conhecem lugares populares que jamais tinham ido mesmo morando lá há anos. Lá pelas cinco horas da tarde, chegam a universidade e encontram outro menino que também faz parte do grupo, lá começam todo o trabalho. Até conseguirem encontrar um computador livre para a edição, e decidir a finalidade do trabalho, já eram sete horas da noite. Conversa vai, conversa vem, separam os vídeos que realmente iriam para o tal documentário.

Os vídeos não ficaram tão bons quanto o grupo imaginava. Ana, sempre teimosa, insiste em fazer o documentário, o sono começa a bater forte na moça, tudo parecia girar. Ela toma um desses remédios para dar aquela energizada e volta a seus afazeres. Até que uma das meninas tem uma ideia, transformar o documentário, em relatos. Vão formulando as perguntas e decidindo quem vai ficar com o que. Já são oito horas da noite, e eles correm atrás de uma câmera para a gravação do relato.

A sala que empresta câmera aos alunos estava fechada em pleno fim de semestre. Elas vão até o estúdio de gravação do curso de comunicação, e lá encontram um moço solidário, técnico e operador de câmeras do estúdio, decidem um lugar para finalmente gravar.  Eles começam a relatar sobre a experiência do documentário, ao terminar, passam os arquivos para um outro HD e se dão conta que já são quase onze horas da noite. Levam um integrante do grupo até sua casa, já estava bem tarde. Tudo que Ana queria era chegar na casa da amiga, tomar um banho e editar o vídeo o mais rápido possível.

Ana é a primeira a tomar banho, ela esperou por aquele momento por horas, e se deu conta da volta que ela tinha dado em menos de 10 horas. Ora e pede para Deus uma noite de trabalho, e que ela possa render nas edições.

As meninas ficaram com fome, e começam a ir atrás de alguma coisa para comer, que o pedido seja feito por telefone e entregue em casa. Não acham nada aberto, ninguém atende o telefone. A única solução que acharam é de comer numa rede de fast food que fica aberta 24 horas. Elas saem de casa, uma hora da manhã, para ir comer. Fazem o pedido dentro do carro, e correm para casa, novamente.

Ana comeu em cinco minutos, a última coisa que ela tinha comido, era um desses salgados que vendem nas cantinas da faculdade. Chegando em casa abre o computador e começa as edições. O sono não batia, e Ana viu as luzes da cidade apagadas pela janela. Lá pelas quatro horas e meia da manhã, o sono chega, e a moça decide dormir por duas horas.

Ao deitar faz outra oração, dessas que ela costuma fazer antes de dormir, agradece e pede proteção. Ana vê o sol nascer e o despertador aponta para seis e meia da manhã. Ela continua a trabalhar, nem lava o rosto, muito menos escova os dentes. Enquanto as meninas acordavam para se arrumar e ir para a aula, Ana decide que não vai, ela não tinha dormido e precisava urgentemente desse descanso.

As edições terminaram lá pelas oito e quinze da manhã. As meninas partem rumo a universidade. Ana fica no apartamento, e só encontraria as meninas novamente, meio dia para pegar uma carona para a rodoviária, e de lá partiria para a sua casa, e assim dormiria toda a tarde.

Ela não consegue dormir. Decide arrumar o apartamento. Arruma o colchão que dormiu, arruma o quarto da amiga. Entra no banheiro, toma banho, se arruma, e traz suas coisas do quarto para a sala. Lá ela arruma todas as suas coisas. Tenta colocar tudo dentro das bolsas. Já era onze e meia, Ana encosta no sofá e pega no sono. Só é acordada pelas meninas, ao meio dia, hora de partir.

Elas descem do apartamento com seus pertences e entram no carro. Ana é deixada próxima a rodoviária, lá ela espera pelo seu ônibus que só sai às 13:20 horas. Ana fica insegura, estava cheia de bolsas, com coisas de valor, tanto pessoal, quanto material. Ao entrar no ônibus, escuta uma conversa entre duas mulheres. Elas falavam dos assaltos que estava acontecendo dentro dos ônibus. Ana fica mais insegura, faz outra oração, e ainda assim as mulheres continuavam no mesmo assunto. Ana pega no sono novamente, e só acorda ao chegar perto de sua cidade. Ela olha para o celular, e não tem nenhuma ligação da mãe, que geralmente, ligava para Ana, para saber onde estava, e se estava tudo bem. Ela confere novamente as horas, eram 14:20 da tarde.

A moça que estava cansada, não via a hora de descer em casa. Ela fica fazendo planos de onde descer para não chamar atenção. Mas como não chamar atenção? Alta, com várias bolsas e uma pasta! Ela desce no ponto de ônibus próximo ao comércio. Percebe uma movimentação estranha. Decide diminuir o passo em frente ao comércio, para ficar ao alcance das pessoas que estavam ali.

Dois homens em uma moto passam duas vezes por Ana. Ela desconfia, e segue seu olhar até onde consegue, seguindo a moto. Eles somem em uma rua. Ela anda rápido novamente. Ao chegar na quadra onde mora, que para ela, só em estar na sua rua, onde cresceu, era sinônimo de segurança. Ela ouve passos de alguém correndo, quando olha para trás, um homem mostra a arma, pede a bolsa onde estava seu notebook e celular.

Nesse momento, o pensamento de Ana foi direto ao da sua mãe, que sempre alertava a moça a nunca reagir. Ela entregou o que ele pedia. Foi traumático, ela não conseguia chorar. E a rua de Ana, que sempre é bem movimentada, não havia ninguém. Ela corre em direção a sua casa, poucos metros do acontecido. Chama seu irmão, com aquele grito que só momentos desesperadores conseguem exprimir. Era a primeira vez que Ana era assaltada, e olhe só, três horas da tarde e a poucos mais de 500 metros de casa. Situação que ela jamais imaginou um dia passar.Hoje ela desconfia de tudo e de todos. Não se sente mais segura. O sono foi embora, e a fome passou. Segundo Ana, aquela sexta-feira, foi o pior dia da vida dela.

E todos os dias, pessoas em todos os lugares do Brasil são assaltadas, em sua maioria, mulheres. Com Gabriela aconteceu enquanto ela voltava da faculdade a noite. Ela percebeu que tinham dois homens em cima da passarela, decidiu passar por baixo, e mesmo assim, eles a cercaram e tomaram tudo que ela tinha.Com Cris, na volta do estágio, à noite, homens entram no ônibus a caminho de casa, apontam a arma para ela e levam todos os pertences dos passageiros. Não levaram nada de Cris, mas o trauma maior, era a arma apontada para ela.

Pense só, de quantas maneiras, todas poderiam ter evitado. Se os arquivos de Ana estivem no HD, ela usaria o tempo indo até em casa, editando, não teria virado a noite, iria a aula, pegava seu ônibus ao meio dia, e chegaria em casa no seu horário normal, as uma da tarde. Com Cris, poderia ter sentando em outro lugar do ônibus, ou pegado um outro ônibus mais cedo. Com Gabriela, poderia ter descido em outa parada, ter pego outro ônibus. Existem tantos “e se”.

Mas, e se a segurança nas cidades fossem mais ferrenhas? E se, todo mês não houvesse fugas dos presídios? E se? Seria tudo por acaso, ou a falta de segurança?

Quando isso acontece com a gente, o mundo é enxergado de outra maneira. Toda e qualquer pessoa é motivo para desconfiança. Antes o seu olhar para trás enquanto anda na rua era só por precaução, hoje é por medo. Você não tem mais aquela sensação de que isso nunca mais vai acontecer. Quando isso acontece, nos culpamos por ser quem somos, por estar onde estávamos, por ter o que tínhamos, ou o que nunca vamos ter novamente, segurança pública, e segurança de ser, estar e ter.

Os nomes usados nessa crônica são fictícios*