Verônica Holanda

Certas profissões são mais provas de amor do que empregos. Se trabalhar com pessoas já é complexo, imagine com pessoas doentes. Com bebês então, nem se fala. Haja força de vontade e gosto pela profissão. Eu sempre pensei que a rotina de uma UTI Neonatal, setor onde os recém-nascidos ficam internados quando necessário, seria um caos. Visitando o Hospital Regional de Ceilândia, notei que estava certa. Mas, ironicamente, descobri que, mesmo para os profissionais ali, vale – e muito – a pena enfrentar toda essa desordem.

Visitei o setor no turno diurno. Logo de início se encontra a primeira dificuldade: falta de pessoal. No setor de médio/alto risco, onde a demanda para lidar com os oito recém nascidos exigiria três técnicas de enfermagem e uma enfermeira, havia apenas duas técnicas e uma enfermeira, e esta ainda se dividia atendendo outro setor.

As trocas de turnos são feitas às 7h e às 19h, e a sobrecarga de serviço é uma constante no local, independente do horário, visto que a equipe de funcionários é pequena, majoritariamente composta por mulheres. Algumas delas nem mesmo moram em Brasília e enfrentam longos percursos, como de Goiânia e Luziânia para trabalhar na UTI Neonatal de Ceilândia. E o fazem com carinho e cuidado, ganhando em retribuição o reconhecimento das mães dos pequenos pacientes por tanta dedicação, apesar da correria.

E que correria! Tudo acontece ao mesmo tempo, é fácil ficar levemente desorientado, sem saber para onde olhar. Enquanto um bebê está com pouca oxigenação no sangue, de repente outro começa a chorar. Nisso, um terceiro arranca a sonda sem querer e faz uma grande bagunça. No meio da situação caótica, é preciso decidir rapidamente as prioridades. As novatas se esforçam para entrar no ritmo quase frenético das colegas mais experientes.

Outra preocupação constante na mente das funcionárias é a dosagem dos remédios. Os médicos fazem a prescrição da medicação, porém algumas precisam ser diluídas. A proporção depende de fatores como o peso do bebê e do tipo de soro a ser utilizado. Essa diluição é feita pelas técnicas de enfermagem. Algumas levam algum tempo para se adaptar a pensar facilmente essas proporções, outras tem mais afinidade com o cálculo numérico, implicitamente necessário na área de saúde.

É intrigante notar que cada uma delas tem uma especialidade única, que faz toda a diferença no setor. Uma das técnicas, formada em matemática, é conhecida por ser a calculadora da UTI. Ela faz contas de cabeça com extrema facilidade e dá aulas de cálculo de medicação a cada leva de novatos que chega. E, segundo as colegas, é uma ótima professora. Ela se diverte vendo a expressão de surpresa nos rostos das calouras que ainda não conhecem seu dom excepcional.

Outra é conhecida como “mãos de fada”. O apelido vem do seu amplo conhecimento de veias e artérias do corpo humano. Quando nenhuma das colegas consegue acessar a veia para fazer as medicações, ela é chamada e nunca falha. Ela encontra as veias mais aleatórias, em lugares onde as colegas nem imaginavam.

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Polvinhos de crochê feitos no setor para agradar os bebês durante sua recuperação. (Foto: Metrópoles)

Elas dão o melhor de si para cuidar dos pequenos pacientes e das mães. Apesar de tudo, sobra tempo para alguns mimos. Projetos de fotografia e artesanato se fazem presentes no setor, levantando o ânimo de todos ali presentes. O mais recente derrete os corações: polvos de crochê para os bebês abraçarem dentro das incubadoras. Assim, eles podem se sentir um pouco mais seguros e amparados, mesmo com todas as dificuldades já encontradas.

O recém nascido mais grave do setor é um prematuro de 600 gramas. Processar a ideia do peso desse pequeno (vou chamá-lo de Marcelo, que significa pequeno guerreiro) ainda dá nó no meu cérebro. Pensar que, mesmo tão frágil, ele luta com tudo o que tem para ficar bem, me mostra que somos capazes de coisas grandiosas. E às vezes muito difíceis. Mesmo ligado a aparelhos de ventilação mecânica, Marcelo estava com baixa oxigenação em seu organismo. A indicação do médico foi para que fizessem uma medicação, mas ela não surte efeito.

Logo a ansiedade se faz presente entre as técnicas. Será que vai dar certo? Será que outra medicação não seria mais eficaz? Será que ainda há tempo de corrigir? Será que vai ficar tudo bem? Mas o nervosismo logo se dissipa quando a segunda tentativa funciona, para a alegria geral. Elas vibram com a melhora de Marcelo, que segue sua jornada tão dura. Marcelo sobreviveu a mais um turno, trazendo mais determinação aos funcionários do setor. E mais importante: esperança de que o pequeno terá um futuro fora do hospital.

A cada criança que recebe alta na expectativa de levar uma vida cheia de saúde e alegria, todos ali sentem que ainda vale a pena buscar a ordem em meio ao caos. No fim das contas, eis o que eu descubro nessa lição de vida: a beleza humana que se manifesta na conciliação entre caótico e racional, fragilidade e força, medo e esperança. E assim, às 19h, outro turno começa na UTI Neonatal do hospital de Ceilândia. E volto para casa sabendo que, por mais difícil que uma profissão possa parecer, o amor sempre a fará valer a pena.